JP Castanheira

 

— A Bela vai me matar — murmuro.

O intuito era comentar apenas para mim mesmo, mas meus seguranças me olham de lado, deixando claro que também ouviram. Charles, um dos mais antigos da equipe, acena discretamente, como se concordasse com as minhas palavras.

Caramba.

Ela vai mesmo me matar.

Ainda assim, não consigo voltar atrás na decisão.

Não poderia passar por ali mais uma vez e não tomar uma atitude.

— Tem certeza, senhor Castanheira? — Charles questiona.

Detesto ser chamado assim.

“Senhor Castanheira” é o PC, meu pai. Mas estou tão entretido bolando um plano para justificar o injustificável que deixo o pronome de tratamento para lá.

— Sim.

Todos viramos na direção da esquina quando começa a se aproximar.

É agora.

— Está chegando — anuncio, como se a minha equipe já não tivesse notado a aproximação.

Não tem mais volta.

Que a minha princesa me perdoe, mas é melhor pedir perdão, do que pedir permissão…

 

*

 

Zuri Castanheira

 

— Papai? — chamo ao ouvir a porta da sala se abrir.

Tenho uma reunião essa manhã, mas queria sentar com ele para analisar o bendito contrato do novo empreendimento. Ele detesta lidar com essas coisas, mas a mamãe está ocupada com a gestão de imagem de uma cantora que foi flagrada por um paparazzo em uma situação delicada, então disse para eu forçar o “seo JP” a ler a proposta e assinar por eles.

Franzo o cenho quando ele não me responde.

Geralmente, meu pai sobe correndo a escada só para me oferecer o braço e me acompanhar durante a descida. Segundo ele, as princesas não podem andar sozinhas.

Fofo.

— Pai? — repito.

— Er… eu… hã… Já vou, Moana!

Estranho.

Muito estranho.

— Está tudo bem? — pergunto da porta do meu quarto, enquanto coloco os meus brincos.

— Sim, sim. O pai já vai, filhinha. Fique aí.

“Fique aí?”

Claramente, João Paulo Castanheira está aprontando. E, pelo tom desesperado em sua voz, é uma encrenca das grandes.

Pego as minhas sandálias nas mãos e desço descalça mesmo.

— Moana! — exclama, fechando a porta da cozinha atrás de si.

— Pai? — respondo, levantando uma sobrancelha.

— Nossa, como você está linda, filhinha. O pai vai levá-la até o carro…

— O que você fez, “seo Jotapê”?

— Nada! — responde, rápido demais.

Alguém gira a maçaneta e ele coloca a mão para impedir que a porta seja aberta.

— Estou ficando assustada.

O som de uma pessoa se debatendo dispara uma centena de gatilhos na minha cabeça.

— O que está acontecendo aqui? — pergunto, usando o tom autoritário que aprendi com a mamãe.

— Nada, Moana… — murmura, em um muxoxo.

Passo por ele e retiro sua mão da maçaneta, abrindo a porta sob seus protestos.

Arregalo os olhos assim que me deparo com o interior da cozinha.

— Não conta para a sua mãe! — implora, choramingando alto.

— Ai meu Deus!

Charles está segurando um adolescente pelos ombros e eu tenho certeza que já vi esse rosto antes. Após um instante, consigo lembrar. É o mesmo garoto que já vi diversas vezes vagando pelo pontilhão próximo à entrada do morro do Taliano.

Da última vez que fui até a comunidade para atender um caso pró-bono, meu pai me acompanhou e nós dois vimos esse garoto andando com apenas uma camiseta.

Papai tirou o caso do próprio corpo e deu mais algumas notas bem altas para ele na ocasião, mas eu sabia que aquilo não seria o suficiente.

— Você trouxe o garoto para casa? — questiono, ainda sem entender.

— Me solta, mermão! — o rapaz se debate e dá um passo para longe do segurança. — Não sei qual é a de vocês, mas eu não curto essas paradas…

— O quê? — meu pai e eu exclamamos ao mesmo tempo.

— Quero ir embora, sacou?

Charles volta a se aproximar e o garoto ergue as mãos, como se estivesse se preparando para brigar.

Puxo meu pai de lado.

— Pai, o que está acontecendo aqui?

— O garoto não queria vir!

Pisco algumas vezes, tão chocada que não consigo assimilar as palavras.

— Pai, você sequestrou o rapaz?

— Sequestrar é uma palavra muito pesada, Moana. Ele só não queria vir e aí…

— Pai! — balbucio, indignada.

— Eu não podia deixar o garoto na rua, princesinha!

Esfrego o rosto, pensando nas milhões de possibilidades do quanto isso pode dar errado. Imagina só as manchetes: “Ex-artilheiro do Bluedogs sequestra garoto na comunidade do morro do Taliano”.

— O que passou pela sua cabeça, pai?!

— Ah, Moana… A gente tem tanto espaço aqui…

— Aí, vocês! — o rapaz chama. — Antes de vazar daqui, será que posso comer aquilo? — pergunta, apontando um bolo de chocolate que estava esfriando em cima da pia.

— Claro, filho — JP Castanheira responde e se adianta servindo uma fatia generosa e um copo de leite para ele.

Enquanto o observo comer como se estivesse esfomeado, entendo o porquê de meu pai tê-lo colocado no carro, mesmo que tenha sido uma atitude impensada e errada.

— Pai… — murmuro, quando o loiro alto que me criou como uma princesa se coloca ao meu lado.

— Ele estava descalço — o ex-jogador diz, me interrompendo.

Noto os pés sujos e até um pouco machucados. Da última vez que o vi, calçava tênis novos. Deve ter sido assaltado e isso deixa meu coração apertado.

— Podemos levá-lo para comprar roupas, mas não podemos sequestrar um adolescente, pai.

A garganta do homem mais gentil do mundo sobe e desce conforme ele engole em seco. Quando me encara, seus olhos azuis estão marejados e eu sei que é uma batalha perdida.

— Ele é só uma criança, filha…

Não tem a menor chance do meu pai voltar atrás na decisão que tomou.

— A mamãe vai nos matar — digo, baixinho.

Meu pai sorri e me abraça de lado, aliviado por ter convencido pelo menos a mim.

— Deixa que eu convenço a Bela.

— Antes ou depois dela correr atrás de você com o rolo de macarrão?

— Depois, claro. Minha mulher precisa liberar sua fúria antes de ser convencida pelo meu charme único.

Rio, balançando a cabeça. Só o meu pai para fazer piada em um momento como esse.

— Aí, posso pegar mais, Coroa? — o adolescente pergunta com a boca cheia e o queixo erguido, todo marrento.

— Claro, filho. Só não me chama de Coroa.

— Valeu, Coroa.

Seguro a risada, observando o garoto marrento provocar a pessoa mais teimosa do universo.

Enquanto ele corta mais uma fatia generosa do boco suculento, meu coração se enche de ainda mais amor pelo ser humano incrivelmente bondoso e puro que me adotou quando eu ainda era uma criança.

Esse garoto merece crescer em um lar como o nosso. Resta saber se ele vai querer ficar. E como dona Virgínia reagirá a tudo isso, é claro.