O percurso até o Maine foi tranquilo, sem congestionamento ou qualquer outro problema que pudéssemos enfrentar na estrada.

Em determinado momento, o céu, até então límpido, começa a escurecer e ser tomado por nuvens pesadas. Inclino o corpo para olhar melhor pelo vidro dianteiro bem no momento em que uma gota grossa de chuva o atinge.

Pisco, sentindo a minha garganta se embargar sem qualquer motivo aparente.

É só uma chuva de verão. Por que isso significaria algo?

O pingo se multiplica e logo torna-se uma tempestade torrencial, daquelas muito comuns na região durante os meses de julho e agosto.

A chuva dificulta a visão e, para piorar, o carro sinaliza que entramos na reserva de combustível.

Preciso encontrar um posto para abastecer, mas, se não me engano, o próximo fica dentro da…

A placa anunciando “bem-vindo a Augusta” interrompe meus pensamentos e faz meu coração disparar de um jeito errático, até um tanto desesperado.

— Essa música é péssima! — Luke anuncia antes de mexer nos botões do rádio para escolher uma nova.

Não consigo falar, então apenas aceno, concordando, conforme nos guio para o primeiro posto de combustível, logo na entrada da cidade.

Assim que estaciono, Luke pula da caminhonete, dizendo que vai procurar um banheiro.

— Vê se não demora, garoto! — grito, enquanto ele apenas balança o polegar e o mindinho por cima da cabeça.

Pego a bomba de gasolina e começo a encher o tanque, me forçando a não olhar ao redor como um lunático, ainda que eu me sinta fora do meu juízo perfeito.

Tudo faz disparar meus sentidos.

O cheiro de terra molhada, o barulho da chuva e o vento frio, apesar da temperatura amena.

Engulo em seco mais uma vez, sentindo as minhas mãos tremerem de leve.

Meu celular vibra no bolso da calça e quase agradeço pela distração bem-vinda. Até que vejo o nome da criatura que saiu do carro há menos de 3 minutos.

— O que foi?

— Quer um chocolate?

— Não.

— Salgadinho?

— Não.

— Refrigerante?

— Não quero nada, garoto. Só volta logo para o carro. Ainda temos mais de uma hora de estrada até Orono.

— Vou pegar salgadinho, refrigerante e aqueles chicletes coloridos que você curte, coroa.

— Eu disse que…

Luke desliga antes que eu possa protestar.

Garotos de 18 anos são bastante irritantes.

Ainda assim, esse moleque é tudo o que eu tenho.

O filho que eu não contribuí para vir ao mundo, mas que criei pelos últimos onze anos como se fosse meu.

Termino de abastecer e pego o cartão de crédito para poder efetuar o pagamento aqui fora e não ter que ir até a loja de conveniência.

Estou digitando a senha, quando um conversível rosa para do outro lado da bomba. O som está alto, mas ainda assim é possível ouvir a frenagem nada delicada.

Olho por cima do equipamento e um cabelo loiro chama a minha atenção. O pôr do sol parece querer tornar as coisas mais dramáticas, então um raio alaranjado atinge a jovem pela lateral, tornando suas feições quase mágicas.

Por alguma razão, não consigo desviar o olhar.

E continuo a observá-la, protegido pelo fato de que está olhando para sua amiga e não na minha direção.

De repente, seu rosto se inclina um pouco mais minha direção e eu chego a me desequilibrar.

Ela…

Não pode ser.

Já faz onze anos desde que tudo aconteceu. Como pode não ter envelhecido um dia sequer?

A gargalhada alta e indiscreta é outra lembrança de que não pode ser quem eu estou pensando. Ela tinha um sorriso lindo, mas não ria com tamanha felicidade.

Acho que nunca consegui ver alegria real em suas feições nos anos em que estivemos lado a lado.

— Esse cachorro-quente está irado… — Ouço a voz do Luke ao longe, mas não consigo parar de encarar a jovem dos cabelos dourados e sorriso encantador. — Coroa? Ih. Qual é? Coroa… falando com você…

A amiga diz mais alguma coisa engraçada e uma nova gargalhada melódica chega até mim.

Pai?! — Luke exclama em um tom tão elevado que chama a atenção das duas garotas do outro lado da bomba de combustível.

Aquela que eu confundi com um anjo do meu passado me encara. Seus olhos azuis são desinteressados a princípio, mas logo os arregala.

— Vamos embora — anuncio, puxando Luke pelo braço.

— Pega leve, vou derrubar o refri!

— Jason? — A voz suave faz meu coração disparar. — Jason Porter? É você?

— Acho que ela está falando contigo, pai.

— Entra no carro.

— Mas…

— Entra no carro! — determino, em um tom rude que nunca usei antes.

Meu filho levanta as sobrancelhas percebendo que algo está errado e obedece.

— Jason é você?! — A jovem volta a perguntar, se aproximando.

Finjo que não a notei, a princípio, mas ela usa o apelido que eu não ouço há mais de uma década.

— Jay?!

Paro, sentindo meus ombros se retesarem e respondo de costas para ela.

— Acho que me confundiu. Eu me chamo Brody.

— Perdão, senhor Brody… — sussurra bem atrás de mim. Seu cheiro adocicado me confundindo um pouco mais.

Pela visão periférica percebo que estendeu a mão e está prestes a tocar meu braço.

— Você se parece tanto com ele. O Jay era…

— Jackie! — A outra garota grita, puxando-a pelo braço. — Você enlouqueceu? Não pode sair abordando velhos pela rua!

— Ele não é…

— Jaqueline Nevill, volte para o carro agora ou juro que vou contar para a sua mãe.

— Você é ridícula, Killie — resmunga.

Ouço passos se afastando de mim e tento respirar fundo, embora o ar continue parecendo feito de fogo.

Ela é a… Jackie.

A garotinha que eu carreguei no colo por anos enquanto namorava sua irmã mais velha, Lily.

— Pai? Você legal? — Luke pergunta de dentro do carro, se inclinando sobre a poltrona do motorista.

— Sim — respondo, entrando no veículo. — Vamos embora. Estamos quase na Universidade do Maine.

— É isso aí! — O garoto comemora dando um soquinho no ar.

Ele ganhou uma bolsa de estudos por seu talento como jogador de Hóquei. A história se repete. Mas, dessa vez, eu sou só o cara sentado na arquibancada vendo tudo acontecer.

Acelero até sair do posto de combustível e só então olho pelo retrovisor, vendo mais uma vez o passado ficar para trás, mesmo que isso leve mais um pedaço da minha alma.